sábado, 15 de maio de 2010

Enquanto os fascistas fogem para o Brasil...


Foi com alguma perplexidade que soube da morte de José Luís Saldanha Sanches, nem sequer sabia que estava doente. Saldanha Sanches foi um dos "mitos" políticos da minha tenra juventude, quer antes, em que esteve preso pela PIDE/DGS, quer, sobretudo, depois do 25 de Abril, quando ele e a sua companheira de sempre, a actual Procuradora-Geral Adjunta Maria José Morgado, ao tempo a "Mizé Tung", "conseguiram" a enorme proeza de terem sido os primeiros presos políticos anti-fascistas do novo regime "revolucionário". Por todo o país o movimento a que pertenciam - o MRPP, cujo slogan era: "Nem mais um só soldado para as colónias"- pintou a spray: "Enquanto os fascistas fogem para o Brasil, Saldanha Sanches está preso em Elvas" - frase que até serviu para, pelo menos que eu saiba, uma oral de Português do então 5º ano dos Liceus (actual 9º), em que a professora pediu ao aluno para dividir as orações, o que ele fez correctamente, acrescentando que o sujeito da segunda estava "preso em Elvas".
Saldanha Sanches foi um dos fundadores do movimento maoísta da linha radical de Lin Piao, adeptos fervorosos da Revolução Cultural Chinesa, cuja sigla, significa Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, mas cuja tese fundadora é estranhamente (não para quem os conhecia), que nunca tinha havido um verdadeiro partido do proletariado em Portugal. Propunham-se, assim, "reorganizar" o que nunca estivera organizado.
Saldanha Sanches era, ao contrário do, mais jovem, José Manuel Durão Barroso (sim, esse mesmo, o antigo Primeiro Ministro e actual Presidente da Comissão Europeia), um dos mais "maduros" dirigentes do grupo que também dominava a Revista "O Tempo e o Modo", cujo principal inimigo político era o PCP a que chamavam "social-fascista", isto inscrevia-se no contexto do conflito sino-soviético, com Pequim a acusar Moscovo de um novo imperialismo, concorrente mas concomitante do norte-americano, o "social-imperialismo". Foram lendárias as cenas de pancadaria entre a UEC (organização estudantil do PCP) e o MRPP na Cidade Universitária e um pouco por toda a parte, antes e depois do 25 de Abril, e sobretudo durante o PREC, disputando o controlo das Assembleias e Associações de Estudantes. As suas listas concorriam com a consigna "Ousar Lutar, Ousar Vencer" e as suas palavras de ordem incluiam coisas como "O Povo Luta pelo Pão" - a que nós (mais "anarqueirões" e em abono da verdade, diga-se de passagem) acrescentávamos - "e os Estudantes pelo Fiambre". Dominaram por completo e durante anos, a Faculdade de Direito da "Clássica", que era então designada por "Pagode Chinês" e onde ainda hoje são visíveis vestígios murais desses tempos.
O MRPP e os movimentos maoístas em geral, mesmo, em menor escala, a pró-albanesa UDP, a que o pessoal do "MR" chamava "neo-revisionista" (a Albânia, do "camarada" Enver Hoxha, era então o "farolim" do socialismo no Mundo, sendo o papel de "farol" disputado entre a União Soviética e a República Popular da China), seguiam, ou alardeavam seguir, a "moral proletária", uma forma de conservadorismo "vermelho", contra os "delírios" da "imoralidade" "pequeno-burguesa", "social-democrata", "anarquizante" e "trotskista" pretendendo assim venerar a moral e os bons costumes do tio Zé dos Bigodes (Estaline - que estava "vivo nos nossos corações", nos deles, claro) e do "Grande Timoneiro", o camarada Mao que primeiro era Tse Tung e depois passou a Zedong (enfim, "chinesices"), certamente ignorando ou fazendo por ignorar, que o próprio, já "cota", tinha um autêntico harém de "camaradas" rapariguinhas muito jovens, havendo até um destacado militante do "MR" da Faculdade de Ciências que era ruivo e por isso tinha a alcunha do "cenoura", que o pessoal dizia ser assim por causa da "ferrugem", uma vez que os militantes do "MR", à imaginada imitação da tal mítica "classe operária", só podiam "molhar o bico" nas noites de sábado para domingo, tudo o mais seria "devassidão" e "luxúria" burguesas.
A páginas tantas e após um período em que Saldanha Sanches foi o director do "Luta Popular", o jornal do MRPP, instalou-se no partido um conflito, aliás "clássico", basta consultar as obras da especialidade, entre uma auto-denominada "linha vermelha" liderada pelo "Grande Dirigente e Educador da Classe Operária" (assim, sem mais, nem menos), "camarada" Arnaldo Matos, Secretário-Geral do MRPP, e a por estes designada "linha negra" de tendências "desviacionistas" e "revisionistas", "anti-popular" e "anti-partido", cujo putativo líder seria um tal "renegado" Sanches, que até foi apelidado de "cachorro" e caricaturado com corpo de "basset" acompanhado de outro "cachorro" com cara de Álvaro Cunhal, ambos a comerem da "gamela" do "imperialismo". Moral da história - Saldanha Sanches foi vítima de uma purga interna, se calhar por que insistia em pôr algum juízo naquelas cabeças alucinadas, por isso e também porque dá sempre jeito arranjar um "inimigo" interno, foi "promovido" a "lacaio do imperialismo e do social-imperialismo", "burguês", "revisionista" e "traidor da clase operária". Acabou-se para ele o MRPP, entretanto também acabou para quase toda a gente, Durão Barroso e a maior parte foram para o PSD, alguns, Ana Gomes por exemplo, para o PS e poucos, como Fernando Rosas, esperaram pelo Bloco.
Saldanha Sanches especializou-se em Direito Fiscal, tornou-se professor universitário, com direito, como todos os espíritos independentes, a ser sacaneado na vida académica, e numa das mais autênticas e sui generis figuras mediáticas nacionais.
Desaparece precocemente e vai fazer falta, numa altura em que volta a fazer sentido a velha palavra de ordem do MRPP:
"Pão, Paz, Terra, Liberdade, Democracia, Independência Nacional!!!"

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Segredos

Na recepção do Papa aos "intelectuais", cujo número em Portugal, mil e quatrocentos, pelos vistos supera o da analfabeta Alemanha onde idêntica cerimónia contou apenas com mil e duzentos convidados; tudo indica que a próxima tenha que vir a ocorrer no Estádio da Luz (o que será mais um caso de Guinness), para que nenhum "intelectual" lusitano se sinta excluído, o sucessor de Pedro esforçou-se ao máximo para extrair de Manoel de Oliveira o segredo da vida eterna.

terça-feira, 4 de maio de 2010

O Boomerang Ferroviário


Século e meio depois de os britânicos terem instalado a via férrea em Portugal (até se diz que, como no caso das estradas, deviam estar bêbedos, tal o resultado da "obra") dá-se o boomerang neste domínio e é a poderosa CP, agora com vocação global, que se prepara para, em consórcio com a Renfe (outra luminária do ramo, ou melhor, do "ramal") e uma empresa local, a National Express Group, explorar duas linhas em Inglaterra a partir de Londres: A Essex Thameside (Londres - Shoeburyness) e a Greater Anglia (Londres - Norfolk).
Poderá, assim, o público do Reino Unido, não digo os ingleses, porque parece que o último avistamento de um, na região de Londres, data do dia 15 de Maio de 1967, ter oportunidade de saborear as qualidades únicas do transporte ferroviário à portuguesa e favorecer deste modo o diálogo intercultural luso-britânico, sem ser no "Allgarve" e sem ter que recorrer à mão (digamos assim - não só, mas também) de obra especializada de experts como o Zezé Camarinha.
A este propósito posso contar uma experiência pessoal ocorrida há já uns aninhos, quando a Linha do Sul ainda tinha o seu términus no Barreiro. Gosto imenso de viajar de comboio, penso que é o melhor meio de transporte que existe e por isso, durante muitos anos, utilizei-o para as minhas férias de Verão na lindíssima cidade de Lagos. Uma vez, ao regressar de férias, comprei passagem em primeira classe num daqueles compartimentos com os bancos estofados a veludo, com aquele ar rétro muito século XIX e também já muito fanée, vinha sozinho no compartimento e à janela, entretido com as vistas e com o "Expresso", quando em Tunes, se não me engano, entra uma senhora de aspecto modesto na casa dos sessenta, com um miúdo, que devia ser seu neto, para aí com uns seis anos, ranhoso e se sentam no banco oposto, a mulher trazia um grande cabaz que depositou no chão aos pés. Eu vi que não era pessoal com ar de viajar de primeira, mas como não sou "polícia", nem fiscal, não liguei até que a mulher abriu o cabaz e tirou de lá um grande tacho de alumínio que continha, nem mais, nem menos, do que arroz de tomate, a que juntou uns enormes carapaus fritos (chicharros) e um grande pão alentejano de que cortou grossas fatias com uma grande faca de cozinha, isto tudo tendo posto antes rodilhas no seu colo e no do puto, dando início ao repasto, que pelas horas que eram, devia ser o jantar. Entretanto iam deitando as espinhas de peixe, metódica e eficazmente, para o chão, depois de comerem alambazadamente. Mas o melhor ainda estava para vir, quando a senhora, para a sobremesa, tirou do fundo do cabaz um gigantesco melão de que, com a tal faca, cortou enormes talhadas, não sem ter tido o prévio cuidado de limpar o melão de pevides e "tripas" igualmente para o chão, alcatifado diga-se de passagem, que já começava a acagular de lixo orgânico.
Imaginam o meu estado de espírito entre o gozo e o pânico, tentando disfarçar ambos, protegendo-me com o jornal. Aliás a senhora até foi simpática e perguntou-me muito lusitanamente se "era servido", o que eu declinei educadamente e quase a vomitar, só de ver aquela javardice toda e cada vez mais encolhido (down on the corner).
Nisto, chegámos presumo que à Funcheira e, alvíssaras, entra o revisor, que abre a porta de correr do compartimento e, acto contínuo, olha para mim exclamando "O que é istoooo"?! - (a senhora e o míudo estavam fora do seu ângulo imediato de visão), eu não me contive e gritei: "Está a olhar para mim"?!
Só então o homem percebeu o que se tinha passado e rosnou furiosamente para a mulherzita de modo a que até o puto se encolheu: "Mostre lá o seu bilhete"! - a mulher assustada mostrou-lho e ele continuou aos gritos (justificados, diga-se de passagem) - "A senhora não pode ir aqui. Olhem para isto, olhem só para isto"!!!
Ora, se no Reino Unido têm o célebre fish and chips, por que razão não poderão consumi-lo a bordo de comboios da CP, onde a tradição é já longa?
Aliás, é a própria empresa que o afirma quando fundamenta a sua opção pelo mercado britânico alegando possuir "uma vasta experiência com elevados níveis de segurança, eficiência e comodidade".
É verdade sim senhor, eu sou testemunha!