sexta-feira, 23 de outubro de 2015

João das "Regras"

Diz-se que um provérbio chinês reza qualquer coisa como: "Deus nos livre dos tempos interessantes" - deve ser uma interpretação,  pois não sei se os "chineses" falariam propriamente em algo como "Deus", mas para o caso tanto faz, o que importa é o sentido, no sentido (e passe a redundância) que os tempos interessantes costumam ser atribulados. Os tempos que ora vivemos trazem essa marca, a marca da História a acontecer e a manifestar-se à consciência enquanto acontece.
Cá pelo rincão há quem teime em não querer ver isso mesmo ou, com maior cinismo, vendo-o, deitar tinta de ferrado para tentar esconder o que é em si mesmo evidente. O caso dos resultados eleitorais de 4 de Outubro último trá-lo à saciedade aparecendo como guardiães de uma invocada "tradição", ainda que esta possa não estar plasmada na Lei, demais a mais estando Portugal longe de ser um exemplo da prevalência do Direito consuetudinário. Quer dizer que na interpretação desses doutos arúspices  da política prática (às vezes demasiado) tem dias que pode ser assim e outros em que tem que ser assado.
Dois exemplos de caso: as palavras de Sua Excelência o Senhor Presidente da República ao invocar a prática costumeira na indigitação do Primeiro-ministro, mesmo desprezando a estrita legalidade em toda a sua amplitude e proscrevendo para o limbo exterior forças políticas que representam um quinto dos votantes, o que institui de facto partidos de primeira e partidos de segunda, cabendo aos primeiros governar e aos segundos "dourar a pílula" da democracia. Alegação: não haver precedente,  o que, convenhamos, é fruste face à letra da Constituição que estipula "ter em conta os resultados eleitorais", o que está longe de ter uma leitura unívoca.
Mas eis que se apresenta um segundo caso: o da eleição do Presidente do órgão  Assembleia da República, os mesmos guardiães invocam a "regra instituída"(ai que  esta mania das "regras" já se está a tornar obsessiva, até por serem "regras" in partibus e  que valem só para o que interessa).
Consistindo essa "doutrina" na mesma alegada obrigatoriedade de eleição (mas que raio...) de um elemento da força que "ganhou" as eleições, como se os deputados não estivessem lá a fazer nada e para nada servissem as maiorias, neste ou naquele sentido (o candidato é eleito por maioria absoluta dos votos, algo que nenhuma força política está em condições de reclamar).
Se assim fosse nem valeria a pena haver procedimento de eleição com chamada nominal e tudo, bastaria proclamar do alto da tribuna o nome do ungido.
O que vale é que há "tradições" para tudo e para todos, havendo casos até em que o "speaker", correspondente ao Presidente do órgão, costuma ser da oposição, vejam lá o que as "tradições" podem ser.
 
Post Scriptum: desta vez parece que, mesmo por cá, a "tradição" já não é o que era.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

A "Democracia" Ingerente

Ao coro dos abencerragens que têm vindo a "alertar" para os "perigos" de um governo apoiado à esquerda  em Portugal e que vão "apelando" ao "bom senso" que, nunca nos podemos (olha, não rimou mas aludiu) esquecer  é "a coisa do mundo mais bem distribuída", juntou-se Joseph Daul presidente do Partido Popular Europeu (depois de Rajoy e quejandos, sem esquecer os "nossos" José Manuel "forget about the Durão" Barroso e Paulo Rangel). Sempre acenando com a Grécia e ameaçando de maneira cada vez menos subtil, como quem diz: Deixemo-nos de "filosofias", vamos ao que interessa, com "cenários" que vão até à "expulsão" do Euro (se calhar...).
Esta passagem ao acto, por enquanto verbal, configura uma descarada ingererência nos assuntos internos de um país que ainda é, pelo menos formalmente, independente. Passamos então da fase da democracia emergente ao da democracia ingerente.
Pelos vistos começou o "federalismo da cachaporra".

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A Flauta de Pan (Eco de uma alegada vitória de Pirro)

Pan, deus silvestre grego,  cuja lusitana expressão política homológica  acaba de fazer eleger um representante na Assembleia da República (causando logo afirmações algo disparatadas em certos comentadores dizendo ser a primeira vez que um pequeno partido consegue eleger um deputado em Portugal, olvidando o PSN do Professor Manuel Sérgio) é também o étimo de pânico, estado que levava  (e leva) à paralisia dos viajantes que ao atravessar os bosques, dele eram tomados ao ouvir o som da sua flauta. A eleição de um deputado do PAN (Pessoas, Animais e Natureza) para a AR pode ler-se de várias maneiras (que isto da vida raramente é simples), os seus eleitores serão naturalmente os amigos dos  pets que se mobilizaram para votar numa organização em que se sentem representados e disso não temos dúvidas, ou será também algo de mais complexo e evidencia um certo fastio e uma escolha que não signifique mais do mesmo. Isto não quer dizer que os seus fundadores e ideólogos sejam meramente "amigos dos animais", as suas motivações são muito mais profundas nomeadamente quanto ao vértice "Natureza" e ao seu papel ontológico. Marca esta eleição, sem dúvida, a expressão de um ganho civilizacional pois transcende a imediata motivação "política".
Por outro lado e  em concomitância, não deixa de ser um sintoma em que não podemos deixar de integrar  a vitoriosa derrota da CDU (que perde um lugar no pódio, mas sobe em número de eleitores e representantes e  na sua costumeira auto-avaliação "ganha" sempre) e sobretudo do Bloco de Esquerda que  suplantou o seu próprio melhor de 2009 (dezasseis deputados) com dezanove mandatos, tornando-se a terceira força política em termos parlamentares.
Pergunta-se: de onde terão vindo  tantos votos ? De onde terá brotado este caudal tomando como certeza certa que a votação da CDU (e a do BE nem se fala), ultrapassa largamente o seu "núcleo duro"?
A resposta é de que estes migraram principalmente  do espaço potencial do PS que também aumentou e muito o seu número de eleitores e de eleitos, mas não de modo a impedir uma vitória, ainda que menos folgada do  que a de 2011, da "coligação" (PSD/CDS) que mesmo não conseguindo a tal "maioria", não deixará se ser assombroso, mas não "espantoso", que depois de um mandato inteiro de patifarias, tenha conseguido ganhar mesmo perdendo 700 mil votos.
Estas eleições foram férteis em wishful thinkings, bastante bem distribuídos por sinal, e a ausência de "espanto" para a vitória da dita "coligação" pode encontrar-se no título deste texto que evoca a Antiguidade Clássica. Ora, o clássico é sempre actual, os arquétipos estão lá todos - o medo da mudança e o temor de que o não seja (juntos e ao vivo), o  "Eco" (ninfa das belas palavras)  das "circunstâncias normais", os maiêuticos fantasmas recentes e as também recentes  alegadas "vitórias de Pirro" pretextadas para "justificar" uma defenestração que só seria "perdoada" pelo bálsamo do triunfo, conjuraram-se para que se reedite um interregno em que todo o insucesso será atribuído às costumeiras "forças de bloqueio".
Até a bandeira do "Livre" que dado como tendo um deputado eleito acabou por "morrer na praia", uma papoila, evoca a "dormideira" que se vai instalar nos próximos tempos de verdadeiro "ópio do povo".
E já estamos a ver este espectáculo em reprise.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

A Presciência Divina e a Liberdade Humana : A Regra e Pelo Menos Uma Excepção


"Are you playing God ?" é uma expressão idiomática na língua inglesa que se costuma utilizar para verberar comportamentos de soberba intelectual, nomeadamente quando alguém põe ao alcance das suas terreais possibilidades aquilo que só a Deus seria possível saber ou fazer acontecer. Trata-se de uma questão complexa, pois se assim não fosse o problema da ocorrência do mal seria muito difícil de justificar (é por demais conhecida a controvérsia da compatibilidade entre a existência de Deus e os horrores de Auschwitz). É também complexa a problemática da coexistência da presciência divina e da liberdade humana: se Deus tudo sabe e tudo determina, a acção humana não será verdadeiramente livre, pois estará sempre pré-determinada.
Aqui chegados, cumpre-nos fazer a pergunta com que se iniciou este texto ao Senhor Presidente da República, que já tratou de  lhe  transmitir duas preciosas informações:
Primeiro: Já sabe o que irá fazer na noite do dia 4, o que não deixa de ser estranho porque ainda faltam uns diazinhos para a "coisa"e, se assim é, talvez não valha a pena abrir as urnas e ter aquela trabalheira toda.
Segundo: Não participará nas Comemorações do 5 de Outubro, ou seja, da Implantação da mesma, pois estará a "reflectir" nos resultados das eleições da véspera.
Ora, perante a evidente inccongruência entre estas duas posturas,  logo se poderá daqui  depreender:
Sendo certo que a presciência divina não coarcta a liberdade humana, o que para Sua Excelência deverá ter dias, também é certo que já a deve ter fisgada.