sábado, 5 de julho de 2008

Os Eunucos

Os eunucos devoram-se a si mesmos
Não mudam de uniforme, são venais
E quando os pais são feitos em torresmos
Defendem os tiranos contra os pais
José Afonso
Afinal noventa e um anos depois da Cova da Iria e por intercessão da "santa" da 5 de Outubro e sus muchachos (y muchachas), produziu-se finalmente a hierofania matemática: no curtíssimo espaço de um ano lectivo, o prodigioso sistema educativo português conseguiu transformar largos milhares de portadores de inumerismo em génios do cálculo e do raciocínio abstracto, é de facto, uma demonstração cabal de que querer é poder: Sócrates quer, Milú sonha e a obra nasce !
E ai de quem tiver alguma dúvida, aí de quem alegar que tais resultados são o produto de uma grosseira "martelagem" que avassala todo o Ensino Público condenado a ser uma fantochada permanente que compromete seriamente o futuro de quem por ele passa e vai passando sem que aprenda o que quer que seja que não possa ser aprendido noutro sítio qualquer.
Ai dos hereges que se atrevam a pôr em causa a monumental fraude em curso, em que tudo se certifica mas nada se ensina a não ser a aproveitar a boleia da conjuntura.
A grande sacerdotisa de serviço já avisou os professores de Português, disciplina onde apesar de bem propiciado, o milagre teimou em não acontecer, de que têm que se esforçar mais e seguir o exemplo dos colegas de matemática ( talvez os mande estagiar em Hogwarts).
Esta situação que neste momento, atinge o paroxismo da total escandaleira pela redução dos níveis de exigência até à insignificância, atestada pelos especialistas a quem a senhora ministra acusa de "terem acordado mal dispostos" e "dizerem mal porque é moda dizer mal", tem vindo a ser preparada há já algum tempo, com a introdução de grupos de "escolha múltipla" onde são várias as opções correctas mas só uma é, arbitrariamente, considerada como tal, com questões mal formuladas cheias de erros lógicos crassos que, no entanto, são admitidos como a mais pura das verdades, com "descritores" de orientação de resposta que são um autêntico atentado à inteligência, tornando claro que a intenção já nem sequer velada, desse pretenso "objectivismo" é evitar o pensamento e treinar apenas a mecanização rebarbativa, (também para passar uma vida a "teclar" é capaz de não ser preciso mais !).
Claro que tudo isto se passa entre discursatas de inflamadas proclamações de "exigência", de "rigor" e de "sucesso" e de outras patacoadas vazias do género que tão bem compõem o ramalhete da mediatizada demagogia contemporânea, fazendo lembrar os bairros manhosos que têm quase sempre um nome apelativo, mas bonito, bonito só mesmo o nome porque o resto é que costuma ser, como dizia a minha rica avó, " o bom e o bonito", não passando tudo de manobras clássicas de propaganda rasteira a que Orwell chamou newspeak.
Não resisto a contar um episódio bem revelador da presença deste "espírito" : a minha mulher que como eu é professora de Filosofia ( afinal assim só estragámos uma casa), fez estágio profissional no fim dos anos 80 na recém criada Universidade Aberta que tinha por característica essencial a então grande modernice de ser tudo "à distância"; de tal modo que mesmo quando os formandos lá se dirigiam pessoalmente para falar com o Assistente de serviço para qualquer esclarecimento, não lhe viam a cara e era-lhes, na portaria, passado para as mãos um telefone para comunicarem com o dito,(ainda não havia Internet generalizada). Um dia acompanhei-a lá para esclarecer o conteúdo de uns Testes Formativos que vinham pelos Correios e depois de resolvidos eram devolvidos sendo posteriormente enviadas as formandos as soluções, nós reparámos que várias questões de "escolha múltipla" estavam mal formuladas, havendo mesmo uma que era um completo contrasenso. Quando lá chegámos e a funcionária da portaria nos deu o telefone para falarmos com uma Assistente de quem nem sequer sabíamos o nome e expusemos o problema, a senhora respondeu dizendo que mais de 60% dos formandos tinham optado pela resposta que era considerada correcta; nós objectámos dizendo não ser a verdade uma questão de natureza estatística ou de relação maioria/minoria, se assim fosse o Marco Paulo seria um grande cantor e exemplificámos com uma situação hipotética : se questionássemos mil pessoas sobre a capital do Brasil ou dos Estados Unidos provavelmente a maioria das que presumem saber, responderia coisas como o Rio de Janeiro ou Nova Iorque sem que isso faça dessas cidades as capitais dos referidos países.
A resposta da dita Assistente à distância foi de "cabo de esquadra":
- "Vejam lá , têm razão, mas o professor que elaborou esse Teste Formativo vai também elaborar o Exame final e ele costuma fazer muitas desse tipo"! Ou seja :" ponham-se a pau, quem vos avisa vosso amigo é"!!!
Eis o prenúncio da situação que hoje estamos a viver em pleno e que nos obriga à cautela de ter sempre à mão de semear duas opiniões: a verdadeira, para uso privado , a de que isto é tudo uma grande vigarice e não passa de uma versão aggiornata da estória da única vaca de uma falida exploração pecuária da antiga União Soviética que obrigada ao tratamento estatístico anual e como por temor, o responsável de cada instância sucessiva do Estado e do Partido, que aliás, se confundiam, ia acrescentando um zero, quando o relatório chegou a Moscovo, as vacas já eram um milhão ! Depois temos também que exibir uma "posição" institucional para exprimir oficiosamente, quando em reuniões ou relatórios profissionais, nos vimos compelidos a tecer loas à barbaridade. Mais uma vez à , mais do que coincidente, semelhança dos famigerados processos de Moscovo em que as vítimas chegavam ao ponto de sabendo-se de antemão condenadas, fazerem pungentes autocríticas para salvar ao menos o pão dos filhos !
Ora Portugal tem sido quase sempre o país do medo, se exceptuarmos os curtos e felizes poucos dias de Abril e mais uns quantos episódios de genuína alegria colectiva na nossa longa história, poucos terão sido os dias em deixámos de" perfilados de medo" agradecer" o medo que nos salva da loucura"!!!
Em vénias malabares à luz do dia
Lambuzam de saliva os maiorais
E quando os mais são feitos em fatias
Não matam os tiranos querem mais
José Afonso

sexta-feira, 4 de julho de 2008

A Avaliação dos Padres

Não sou católico praticante e tive uma educação laica, no entanto durante os sete anos de Liceu e mesmo quando com Veiga Simão a disciplina de Religião e Moral se tornou de assistência voluntária, nunca pedi dispensa da disciplina, apesar do meu pai mo ter proposto muitas vezes. É que eu tive no 1º ano, com apenas 10 anos, como professor de Moral um padre, de que já não me recordo do nome, mas que foi o que deu a extrema unção ao Quim Zé ( Joaquim José Correia, jovem cavaleiro tauromáquico mortalmente colhido no Campo Pequeno em meados dos anos 60) e logo no início do ano lectivo em Outubro de 1966,no Liceu de Gil Vicente, ali à Graça, o padre em questão perguntou, brandindo o manual da disciplina que se intitulava "A Nossa História Divina" a uma turma de mais de 40 rapazinhos (é verdade, as turmas nessa altura eram enormes e o Gil Vicente era um Liceu só de rapazes):
-" Quem foram os nossos primeiros pais" ?
A rapaziada respondeu em uníssono :
-"Adão e Eva!"
Todos menos eu, que não respondi. Ora o Padre, como eu não tinha respondido a uma questão tão consensual, como hoje se diz, abeirou-se imediatamente de mim com um tom ameaçador, ele que para mais era um homem enorme, alto, gordo, mas forte. Interpelou-me:
-"Então o menino não sabe?"
-"Sei sim Senhor Padre, mas discordo!" E o homem furibundo :
-" Diz o quê, diz o quê ?! Você aqui não diz mas é mais nada !!!- mas, já agora, diga lá! Quem foram os nossos primeiros pais?!"
Eu que tinha estado a ler o livro de Thomas Henry Huxley ( avô de Aldous Huxley) : «Uma Pequena História do Mundo», pequena só de nome , pois é um enorme e interessantíssimo calhamaço, em que o autor, amigo e colega de Darwin, expunha a Teoria da Evolução e também já anteriormente industriado na matéria pelo bom do meu pai, respondi:
- "Oh Senhor Padre nós não temos propriamente primeiros pais!"
-"Ah não , então como é que foi "?!
-"Oh Senhor Padre , o Homem veio do macaco!"-e nisto os olhos chispam-lhe, fica vermelho de cólera e grita:
-"Oh menino, macaco?! macaco era o seu avô !!!"- eu ingenuamente, sem ponta de intenção de ofender, retorqui:
-"Oh Senhor Padre, logicamente, o seu também"!
Nisto o homem enlouqueceu. Agarrou-me por detrás do pescoço com uma das mãos enquanto com a outra me esbofeteava, abriu a porta da sala com o pé e atirou-me, literalmente, para o olho da rua, não contente com isto ainda participou ao Reitor, um professor de latim, que era boa pessoa e tinha a particularidade de, sendo goês, ser deputado pelo Estado da Índia, que Nerhu tinha mandado invadir em 61, mas Salazar insistiu em manter a representação na Assembleia Nacional. Este mandou chamar o meu pai que ficou à rasca, como então se dizia e não era caso para menos, dadas as circunstâncias.
Mas o Senhor Reitor só lhe disse que não havia problema nenhum à excepção de que " o senhor padre já não quer que o moço vá mais às aulas". E assim umas quantas galhetas me livraram das aulas de Moral até ao fim do ano ! No ano seguinte, 67/68, abriu o ensino liceal no Barreiro, uma Secção do Liceu de Setúbal que em 1970 se veio a converter em Liceu Nacional do Barreiro e eu continuei a ter aulas de Moral e tive muita sorte em as ter continuado, pois o professor foi, nem mais nem menos, o Chico Fanhais (nessa altura Padre Francisco Fanhais), que até se pirar para França, deu as aulas de Religião e Moral mais maravilhosas de sempre - tocava e cantava para nós, punha música de intervenção, foi através dele que ouvi pela primeira vez "Morte e Vida Severina" de João Cabral de Mello Neto, que ouvi Geraldo Vandré cantando "Para Não Dizerem que Não Falei de Flores", os "Vampiros" do Zeca Afonso (de que o Chico Fanhais foi amigo e acompanhante até à morte), Adriano Correia de Oliveira, Bob Dylan e Joan Baez e tambem Brel, Brassens, Léo Ferré e muitos, muitos outros, enquanto discutíamos a pobreza, a falta de liberdade , a repressão fascista, a condição das mulheres, a sexualidade, o problema das drogas, etc., etc..
É claro que o que é bom não pode durar muito e o Chico que vinha dar aulas de lambretta, não deve ter sido nela que fugiu para França com a PIDE à perna.
Mas mesmo assim não desisti das aulas de Moral e ainda bem, pois tive mais dois padres até ao 7ºano, então o último do Liceu : o padre Carlos Capucho e o padre Adelino, que tinha vindo precisamente de França de trabalhar com a emigração portuguesa. Pois as aulas quer de um quer de outro foram sempre um espectáculo de inteligência e crenças só na dúvida !
Note-se ainda que se ao primeiro, o do Gil Vicente, perdi e ainda bem, o rasto, já aos outros três, encontrei por várias vezes e fui tendo novas nestes quase quarenta anos e já todos tiveram mulher e filhos e certamente netos !!!
Isto tudo para dar conta do desencanto que já por várias vezes experimentei quando ao ir aos funerais de pessoas conhecidas, colegas, amigos que cedo partiram ou dos seus familiares (e ainda esta manhã fui a um), assisto a cenas tristes por parte de , infelizmente, mais do que um sacerdote, que ao oficiar as exéquias não se lembra do nome do falecido e o pergunta displicentemente em voz alta e por causa do Sol, põe a estola pela cabeça e terminada a função se raspa de imediato.
Esta atitude de meros funcionários e ainda por cima incompetentes não se coaduna com o munus que ao sacerdote deve assistir e que é essencial na assistência espiritual que é a sua missão ! E depois não venha a Igreja Católica queixar-se da fuga dos fiéis para as chamadas seitas onde as pessoas se sentem acarinhadas e reconhecidas.
Talvez seja tempo do Vaticano começar a arranjar umas "grelhas" paras avaliar os padres !