Não sou católico praticante e tive uma educação laica, no entanto durante os sete anos de Liceu e mesmo quando com Veiga Simão a disciplina de Religião e Moral se tornou de assistência voluntária, nunca pedi dispensa da disciplina, apesar do meu pai mo ter proposto muitas vezes. É que eu tive no 1º ano, com apenas 10 anos, como professor de Moral um padre, de que já não me recordo do nome, mas que foi o que deu a extrema unção ao Quim Zé ( Joaquim José Correia, jovem cavaleiro tauromáquico mortalmente colhido no Campo Pequeno em meados dos anos 60) e logo no início do ano lectivo em Outubro de 1966,no Liceu de Gil Vicente, ali à Graça, o padre em questão perguntou, brandindo o manual da disciplina que se intitulava "A Nossa História Divina" a uma turma de mais de 40 rapazinhos (é verdade, as turmas nessa altura eram enormes e o Gil Vicente era um Liceu só de rapazes):
-" Quem foram os nossos primeiros pais" ?
A rapaziada respondeu em uníssono :
-"Adão e Eva!"
Todos menos eu, que não respondi. Ora o Padre, como eu não tinha respondido a uma questão tão consensual, como hoje se diz, abeirou-se imediatamente de mim com um tom ameaçador, ele que para mais era um homem enorme, alto, gordo, mas forte. Interpelou-me:
-"Então o menino não sabe?"
-"Sei sim Senhor Padre, mas discordo!" E o homem furibundo :
-" Diz o quê, diz o quê ?! Você aqui não diz mas é mais nada !!!- mas, já agora, diga lá! Quem foram os nossos primeiros pais?!"
Eu que tinha estado a ler o livro de Thomas Henry Huxley ( avô de Aldous Huxley) : «Uma Pequena História do Mundo», pequena só de nome , pois é um enorme e interessantíssimo calhamaço, em que o autor, amigo e colega de Darwin, expunha a Teoria da Evolução e também já anteriormente industriado na matéria pelo bom do meu pai, respondi:
- "Oh Senhor Padre nós não temos propriamente primeiros pais!"
-"Ah não , então como é que foi "?!
-"Oh Senhor Padre , o Homem veio do macaco!"-e nisto os olhos chispam-lhe, fica vermelho de cólera e grita:
-"Oh menino, macaco?! macaco era o seu avô !!!"- eu ingenuamente, sem ponta de intenção de ofender, retorqui:
-"Oh Senhor Padre, logicamente, o seu também"!
Nisto o homem enlouqueceu. Agarrou-me por detrás do pescoço com uma das mãos enquanto com a outra me esbofeteava, abriu a porta da sala com o pé e atirou-me, literalmente, para o olho da rua, não contente com isto ainda participou ao Reitor, um professor de latim, que era boa pessoa e tinha a particularidade de, sendo goês, ser deputado pelo Estado da Índia, que Nerhu tinha mandado invadir em 61, mas Salazar insistiu em manter a representação na Assembleia Nacional. Este mandou chamar o meu pai que ficou à rasca, como então se dizia e não era caso para menos, dadas as circunstâncias.
Mas o Senhor Reitor só lhe disse que não havia problema nenhum à excepção de que " o senhor padre já não quer que o moço vá mais às aulas". E assim umas quantas galhetas me livraram das aulas de Moral até ao fim do ano ! No ano seguinte, 67/68, abriu o ensino liceal no Barreiro, uma Secção do Liceu de Setúbal que em 1970 se veio a converter em Liceu Nacional do Barreiro e eu continuei a ter aulas de Moral e tive muita sorte em as ter continuado, pois o professor foi, nem mais nem menos, o Chico Fanhais (nessa altura Padre Francisco Fanhais), que até se pirar para França, deu as aulas de Religião e Moral mais maravilhosas de sempre - tocava e cantava para nós, punha música de intervenção, foi através dele que ouvi pela primeira vez "Morte e Vida Severina" de João Cabral de Mello Neto, que ouvi Geraldo Vandré cantando "Para Não Dizerem que Não Falei de Flores", os "Vampiros" do Zeca Afonso (de que o Chico Fanhais foi amigo e acompanhante até à morte), Adriano Correia de Oliveira, Bob Dylan e Joan Baez e tambem Brel, Brassens, Léo Ferré e muitos, muitos outros, enquanto discutíamos a pobreza, a falta de liberdade , a repressão fascista, a condição das mulheres, a sexualidade, o problema das drogas, etc., etc..
É claro que o que é bom não pode durar muito e o Chico que vinha dar aulas de lambretta, não deve ter sido nela que fugiu para França com a PIDE à perna.
Mas mesmo assim não desisti das aulas de Moral e ainda bem, pois tive mais dois padres até ao 7ºano, então o último do Liceu : o padre Carlos Capucho e o padre Adelino, que tinha vindo precisamente de França de trabalhar com a emigração portuguesa. Pois as aulas quer de um quer de outro foram sempre um espectáculo de inteligência e crenças só na dúvida !
Note-se ainda que se ao primeiro, o do Gil Vicente, perdi e ainda bem, o rasto, já aos outros três, encontrei por várias vezes e fui tendo novas nestes quase quarenta anos e já todos tiveram mulher e filhos e certamente netos !!!
Isto tudo para dar conta do desencanto que já por várias vezes experimentei quando ao ir aos funerais de pessoas conhecidas, colegas, amigos que cedo partiram ou dos seus familiares (e ainda esta manhã fui a um), assisto a cenas tristes por parte de , infelizmente, mais do que um sacerdote, que ao oficiar as exéquias não se lembra do nome do falecido e o pergunta displicentemente em voz alta e por causa do Sol, põe a estola pela cabeça e terminada a função se raspa de imediato.
Esta atitude de meros funcionários e ainda por cima incompetentes não se coaduna com o munus que ao sacerdote deve assistir e que é essencial na assistência espiritual que é a sua missão ! E depois não venha a Igreja Católica queixar-se da fuga dos fiéis para as chamadas seitas onde as pessoas se sentem acarinhadas e reconhecidas.
Talvez seja tempo do Vaticano começar a arranjar umas "grelhas" paras avaliar os padres !
Um comentário:
Caro Amigo,
Acho que o Liceu Nacional do Barreiro, secção de Setubal ainda o era em 1971.
Cordialmente,
Joaquim Carvalhal
rio@paratisol.com
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