quinta-feira, 29 de março de 2012

O senhor Alexandre




Ouvi dizer que morreu o senhor Alexandre, antigo empregado de mesa da "Boleira do Parque" no Barreiro, café em que passei uma boa parte da minha juventude e que fez parte da tradição do Barreiro entre os anos 60 e 80 (hoje ainda existe, mas apesar de ter tudo para o sucesso - localização, tradição, etc. - está decadentíssimo, o que só vem atestar a veracidade do velho provérbio acerca da relação entre nozes e dentes). Esse café, que era uma pastelaria com "fabrico próprio" como era norma e gala na época, tinha um empregado de mesa de porte clássico, dotado de grande eficiência e solicitude, mas de nenhuma subserviência, antes pelo contrário, com uma pose sábia e altaneira um pouco como os "mordomos" dos filmes ingleses (o nome próprio de "Alexandre", forte e raro para a sua geração, ajudava para essa aura "british") de quem ao saber "estar no seu lugar", sabe pôr os outros no respectivo. O senhor Alexandre assim era chamado, nunca lhe cheguei a saber o apelido, ou apenas "Alexandre", tratamento que só concedia a uma muito escassa "bourgeoisie" já entrada nos anos (e dentro desta só a homens), vivia a sua profissão numa intensa dialéctica com a clientela e protagonizou algumas das situações de pura fronteira entre o "surrealismo existencial" e o "dadá" ao vivo em que tive a fortuna não só de assistir, mas sobretudo de participar.
O meu amigo António Cabós costumava meter-se com ele, perguntando ao entrar:
- Senhor Alexandre não tem vergonha? Um homem da sua idade e passa a vida no café!
Ele prontamente respondia:
- Está um barco de adubo no cais da CUF para descarregar. Vão trabalhar malandros!!!
Lembro-me também de um outro companheiro nosso, o Barrento, dito "Branquinho" por ser louro e muito claro, que uma noite lhe perguntou.
- Senhor Alexandre, por acaso tem alguma garrafa de whisky aberta? - ora whisky nos anos 70 - uma garrafa de "JB", só para dar um exemplo dos mais correntes, custava 3000 escudos (ou seja 15 euros) sensivelmente o mesmo valor nominal que agora tem.
O senhor Alexandre disse, entusiasmado, afinal não era todos os dias que, nos tempos do "bagaço", aparecia um cliente de whisky :
- Tenho sim senhor!
- Então feche-a que se pode estragar - aconselhou o "Branquinho" com toda a lata do mundo.
Claro que a resposta não se fez esperar:
- Vão trabalhar malandros, em vez de andarem a gozar com quem trabalha!!!
Ficaram também célebres as suas réplicas a actos de gozo como a dada àquele engraçadinho que pediu "uma sandes de cachucho em pão de forma", tendo o Alexandre respondido "com certeza, é para já!" e, vai daí, trouxe-lhe uma cabeça de cachucho frito (tinha sido o almoço do pessoal) entre duas fatias de um alvíssimo pão de forma, que o tipo, estupefacto, engoliu com um "Sumol" e pelo que pagou alguns 150 escudos (uma fortuna para a época), mas de que não tinha como reclamar dado não constar de nenhuma tabela.
Os conselhos que o Sr. Alexandre dava às avozinhas indecisas sobre o lanche a dar aos netinhos niquentos também foram "históricos":
- Senhor Alexandre não sei o que hei-de dar ao meu menino para lanchar, ele é tão esquisito...
- Olhe minha senhora que tal um pãozinho de leite com fiambre e um compalzinho de nêspera, ou, se preferir, de melancia.
- Oh senhor Alexandre nunca ouvi falar desses sumos...
- Porque são novos, minha senhora, saíram há pouco tempo. Vai ver que o menino vai gostar.
As figuras castiças também abundavam pela "Boleira" como o "Mourão" que dizia ser fadista e aparecia todas as noites de fato preto, camisa aos folhos sem gravata e écharpe de seda branca e depois de pedir "une biére d'aprés" que, invocando os seus tempos de fadista junto da emigração portuguesa em França (há quem diga que tinha sido, na verdade, trolha em Paris), traduzia, perante o gozo dos circunstantes, por "uma cerveja bem fresquinha"; posto o que, antes das dez da noite, a emborcava de um só trago e se ia embora, cheio de pressa, alegadamente para actuar nas "melhores casas de fados do Bairro Alto" (onde parece que ninguém sabia quem ele era).
Havia também o "Al Fatah" que já naquele tempo, antes do 25 de Abri, se dizia "feddayn", membro da OLP e companheiro de armas do Arafat (ainda bem que a Mossad não chegou a saber disso) e muitos, muitos outros, entre "freaks" bizarros e gandulos com uma "pinta do caraças".
Foi também lá que eu e o meu amigo Zé Batista afogámos em imperiais, queijos frescos com sal e pimenta e deliciosos croquetes quentinhos com mostarda, os dez dias de rigoroso regime macrobiótico "número 7" (arroz integral com umas raspas de cenoura, polvilhado com gomásio e chá de três anos), que nos tinha sido receitado para o acne pelo senhor Trancoso da Colmeia e que cumprimos religiosamente com sucesso.
A "Boleira" pertencia a uma família tradicional de pasteleiros, os pais da proprietária tinham uma antiga leitaria junto ao Mercado do Barreiro, precisamente do lado oposto do Parque Municipal, hoje Parque Catarina Eufémia, a "Boleira Velha" do Ti Augusto. A proprietária era uma senhora de grande coração, simpatia e sensatez, a Dona Zulmira, sempre impecavelmente vestida e arranjada, com um lindo penteado à sevilhana e o marido, o senhor Armindo, homem bondoso, de grande simpatia, mas um pouco "out". Esta família, de claras tendências de esquerda, abria as portas aos fugitivos das cargas policiais da GNR a cavalo nos velhos Primeiros de Maio quando a população, entre a qual este vosso amigo, então muito jovem, desafiava o regime fascista de Salazar e Caetano e deu guarida aos filhos de Catarina Eufémia após o assassinato da mãe no Alentejo (sendo um deles pasteleiro e outro, o famoso Zé "Chispe", também empregado de mesa e discípulo do Alexandre). Os bolos mais famosos da casa eram, para além do bolo popular mais apetecível do mundo - o "matateu" - que era enorme, óptimo para matar a fome, delicioso e custava apenas 5 tostões, os pastéis de nata quentinhos que vinham da fábrica contígua às fornadas em grandes tabuleiros, postos a arrefecer em cima do balcão, inundado o ar de um odor inebriante e deveras tentador. A este chamamento costumavam acorrer as "massas" de jovens gulosos e esfomeados por autênticas maratonas de rock and roll na casa de discos do lado (o Seruca) e das idas e voltas até liceus, faculdades e aos bancos do jardim em frente - tudo actividades muito desgastantes a exigir reposição urgente dos teores energéticos, conseguida à custa da deglutição de dúzias destes pastéis recém saídos do forno, baptizados "armindinhos" em homenagem ao dono da casa (até foi inventado um novo verbo: "armindar" e isto muito antes do Acordo Ortográfico) que perguntava quantos se tinham comido e a norma era pagar um ou, quando muito, vá lá, dois. Recordo-me de dois enormes basquetebolistas do Barreirense, grandes "vigas" a rondar os dois metros e mais de cem quilos, que vinham dos treinos no ginásio do clube, na rua de trás, e "abancavam" encostados ao balcão, ainda com os cabelos molhados e o saco de desporto a tiracolo, iam despachando de uma só dentada umas dúzias de "armindinhos", convenientemente polvilhados com canela, bem regados com umas quantas "Laranjinas C" e rematados com uma bicazinha bem tirada para a sossega. Não será de estranhar que a casa tenha ido abaixo...
Toda esta gente já lá não pára - a uns aconteceu-lhes a morte, a outros mudar de vida. Terá chegado agora a vez do carismático Alexandre, certamente bastante para lá dos oitenta, o que não me inibe de evocar esses outros tempos, genuinamente risonhos, com o Mundo a crescer de juventude e esperança, em que "era feliz e ninguém estava morto".

quarta-feira, 28 de março de 2012

As Luzes da Psicanálise



Soube há dias, pelos jornais, da morte do Professor Doutor Pedro Formigal Luzes, médico psiquiatra, psicanalista e meu antigo professor de Psicanálise na Faculdade de Letras de Lisboa em meados dos anos 70, algo que só o 25 de Abril, então muito "fresquinho", tornou possível. O Dr.Luzes era um gentleman com um look very british, vestia-se, falava e portava-se como tal, tinha um finíssimo sentido de humor e não deixava de mostrar (estávamos em 1975) algum embaraço em falar abertamente de tal temática num ambiente fortemente feminizado como era (e parece que ainda é) o da Faculdade de Letras, nessa altura com 8000 alunos, dos quais cerca de dois terços eram mulheres e dos restantes uma grande parte não eram bem, bem, homens (dizia-se por graça). O Dr. Luzes tinha a aula cheia, tratando-se de uma cadeira de opção, podendo por isso ser frequentada por alunos de vários cursos e de vários anos. Numa dessas aulas apinhadas emitiu o que chamou de "Aviso à Navegação":
- "Peço desculpa às senhoras e meninas aqui presentes, mas a Psicanálise é mesmo assim - este pedido de desculpas era frequente da sua parte sempre que abordava algum assunto que considerava mais "delicado" - quando virem algum indivíduo num desses automóveis desportivos vermelhos com um grande nariz, a fazer roncar o motor, fujam! Trata-se certamente de um ejaculador precoce".
Foi também numa das suas aulas que assisti a uma das apresentações de trabalho final mais surrealistas (e olhem que foram muitas), a do Abílio, um colega transmontano castiço, que tinha já mais de trinta anos quando o grosso da coluna ainda nem sequer tinha vinte e trabalhava numa Companhia de Seguros, o que era óptimo por causa das fotocópias, que nessa altura não se faziam com a facilidade com que se fazem hoje. O bom do Abílio que tinha um Mini Clubman amarelo - o que na altura não era também comum no ambiente universitário, era ver o Parque de Estacionamento da Cidade Universitária então e hoje - confessava ter ido para Filosofia para "arranjar paleio para engatar gajas" (o que como motivação não está mal, não senhor) e nos dava boleia para a Baixa passando pelas imediações do Técnico onde abrandava, exibindo o cartão da Faculdade e perguntava às putas se "não faziam desconto para estudantes"? Na exposição desse trabalho, já perto do fim do ano lectivo, o Abílio procurou demonstrar as variações da amplitude da excitabilidade feminina durante o orgasmo, perante os ares, atónito do Professor Luzes, surpreso de quem não o conhecia e de puro gozo da "malta da corda" que já o conhecia de ginjeira. Socorrendo-se de gráficos retirados de algum dos inúmeros recém-publicados manuais de sexologia e imitando o docente nas desculpas às "senhoras e meninas" pela eventual incomodidade do tema, que resta saber o que teria que ver com a Psicanálise, mas naqueles tempos (como ainda hoje) ninguém queria dar "parte de fraco", exibiu vários gráficos do "orgasmo feminino no clímax da excitabilidade" e rematou, peremptório, com mestria:
- "Como vêem colegas, é tudo uma questão de curvas"!!!

quinta-feira, 15 de março de 2012

Brandos Costumes (...)




"Mexe qualquer coisa dentro, já qualquer coisa dentro mexe..."

Nove autocarros da Carris foram atingidos por pedras e outros objectos, "disparados (?!) por desconhecidos", durante a tarde e a noite de quarta-feira na Rua Tito de Morais, na Alta de Lisboa. A empresa acredita que na origem destes incidentes, que só provocaram danos materiais, poderão estar as recentes alterações nas carreiras que servem esta zona da capital. (SIC)

sábado, 10 de março de 2012

Homo Anibalis ou Amuos, Vendettas e Ressentimentos




No Prefácio mais lido dos últimos tempos - pois há uma diferença fundamental entre os livros que interessam e os que não interessam - nos primeiros ninguém lê o Prefácio, nos segundos é a única coisa que se lê - o Professor Aníbal Cavaco Silva, Presidente da República da Bancarrota, "executa" o ex-Primeiro-ministro José Sócrates dizendo algumas "verdades", aliás consabidas, acerca do "figurão".
Repristinando aquela análise política básico-marxista dos anos 60/70, assim entre Politzer e Martha Harnecker, se poderá dizer: "contradições" no campo dos interesses dominantes. E disso não passam de facto, mais do mesmo "circo" mediático para entreter o pagode da classe média "pensadora", agora esfolada de poder de compra e reduzida aos "desportos de sofá".
Se não fosse o lado trágico desta farsa, que por isso mesmo se diferencia da comédia, dava vontade de rir ouvir o "padrinho" das Ilhas, Alberto João, chamar membro de um "gang" ao "sombra" Pedro Silva Pereira.
Com uma diferença - não ouço, nem vejo, por entre a "praça de gente madura", ninguém clamar contra a "má imagem" que isso dá do país perante os "mercados", nossos credores.
Se fosse alguma greve, não faltaria...

domingo, 4 de março de 2012

Morrer de Frio num Clima Ameno



O "clima ameno" e os "brandos costumes" têm sido dois motes da mitologia salazarista que se nos colaram bem à pele. O aparelho ideológico do Estado Novo e dos seus antecessores teóricos não era desprovido de conhecimentos da lusa Psicologia Social (para o comprovar basta ler "Como se Reergue um Estado" do próprio Oliveira Salazar e ver-se-á que não se "brincava em serviço").
Essas balelas, mais a da "demografia" e a da "educação", têm servido às mil maravilhas para justificar o domínio que uma bandidagem gananciosa vem exercendo desde "sempre" sobre esta sociedade (e chego a partilhar, ainda que por motivos opostos, a dúvida de Mrs. Thatcher: "Is there such a thing?") atávica, onde se "desabafa" muito, mas se exige muito pouco e de que resulta, em dados oficiais de Bruxelas, que Portugal é o país da Europa Ocidental onde mais se morre (pasme-se) de frio. Onde isso menos acontece é na Dinamarca, na Suécia e na Noruega (por sinal, todos países "tropicais").

sábado, 3 de março de 2012

Sexo Confessional



Não é apenas por "malandrice" que publico este "post" - é por reconhecer o valor intrínseco da proposta das Irmãs Oblatas cujo próprio nome reivindica a vida como dádiva. Mas não deixa de ser insólito e entrar no território de uma certa dilemática moral, que uma Ordem Religiosa Católica proponha à Câmara de Lisboa a instalação de um bordel na Mouraria.
É certo que na Mouraria, mormente no Intendente, não havendo nenhum bordel "oficial", o que se passa na rua é o espectáculo de um prostíbulo pegado a céu aberto - a ponto de, a seguir ao 25 de Abril, aquando do surgimento de "movimentos independentistas" como o MIA - "Movimento para a Independência do Algarve" e o PIPAS - "Partido para a Independência dos Povos Alentejanos", alguém ter alvitrado porque não a declaração da RPI - "República Prostibular do Intendente".
Claro que perante o tal dilema e em paralelo com a questão da legalização do aborto, a hipocrisia e a "sonsice" continuam a ser notas dominantes e o "catolicismo" oficioso, aquele das "tias", ficou escandalizado com a postura daquelas que por conhecerem bem e por dentro o verdadeiro significado da Caridade e não da "caridadezinha", insistem em demonstrar pelas Obras, mais do que apenas por pias palavras, o verdadeiro "escândalo" da Fé.