No ano lectivo de 1976/77 frequentava o Curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, quando dei por um colega muitíssimo discreto, silencioso, daquelas pessoas que parecem pairar e não se dá por andarem (andam como "fantasmas"). Era um colega africano, magro, de sorriso calmo e olhos grandes com uma expressão meiga.
Discreto em tudo, não se dava em particular com ninguém, assistia às aulas em silêncio sem nunca intervir o que, naqueles tempos de debate permanente, era obra ! O homem, mais velho do que eu, mas sem idade aparente, como até muito tarde na vida é timbre dos africanos, quando interpelado respondia em voz muito baixa, com um sorriso quase como quem pede desculpa, umas breves palavras pouco mais que monossilábicas. Era um introvertido e tinha um ar (maneira de vestir e assim) muito pouco próspero.
Um dia, depois de uma aula, caminhando lado a lado nos corredores da Faculdade, lançou-me um pouco audível, mas incisivo:
- Tem 100 paus ?
Ouvi bem, o "fantasma" estava a pedir-me 100 escudos (hoje, 50 cêntimos de euro; ao tempo era dinheiro). Eu, que sou um coração-mole e por natureza generoso (pessoas que me querem bem costumam dizê-lo de outra maneira: dizem que sou um bocado assim a atirar para o "otário"), abri a carteira e estendi-lhe uma reluzente, acabadinha de sair, moeda de 100 escudos, tendo a plena consciência de que o mais certo era estar a "emprestadá-la".
É claro que o nosso amigo nunca mais pôs os pés nas aulas dessa cadeira (por sinal a única que tínhamos em comum), raramente tornei a vê-lo na Faculdade e mesmo por aí, no Metro ou na rua, quando me via, punha a cabeça em baixo e mudava de passeio...
Passados vários anos, comecei a reparar num novo protagonista político da tão conturbada Guiné-Bissau, que usava como imagem de marca um barrete vermelho, e reconheci o meu colega e devedor, Joaquim, de seu "christian name", Yalá. Eis que chegou mesmo a ser eleito Presidente da República da Guiné, com o nome étnico de Kumba, e a ocupar o cargo entre 2000 e 2003. Parece que a coisa não correu lá muito bem e acabou por ser derrubado por um golpe de Estado militar (atendendo aos parâmetros locais, parece que teve sorte em sair ileso do processo).
Passei a dizer por brincadeira que qualquer dia havia de cobrar essa dívida, como credor internacional, com juros e correcção monetária; é que 100 escudos ao fim de mais de trinta anos deviam dar para uma lauta jantarada.
A primeira notícia que ouvi hoje, bem cedo na rádio, foi a da morte, aos 61 anos, de Kumba Yalá.
Já perdi 100 paus...