Entre Setembro de 84 e Julho de 86, dois anos lectivos portanto, estive em Abrantes a fazer o meu estágio, ou como se chamava na altura, "Profissionalização em Exercício", passava, então como ainda agora, a "vida" na Escola e estando na Sala dos Professores a rever uns papéis para uma aula, reparei em dois sujeitos engravatados que montavam uma exposição de livros para venda, daqueles grandes e com encadernações de "encher a estante", das que se conta que os "patos-bravos" encomendavam a metro. Nisto, ouço um sonoro e bem pronunciado "Senhor doutor", que dá logo para desconfiar, pois quando um "prof" do Secundário é chamado assim tão por extenso por "doutor" será certamente e no mínimo, porque alguém lhe quer vender alguma coisa e não me enganei, um dos vendedores dirigiu-se a mim (a "vítima" disponível) e indagou:
- Então que disciplina é que o senhor doutor lecciona?
Respondi, tranquilamente:
- Filosofia, sou professor de Filosofia.
Os homens olharam um para o outro com esgares de alguma perplexidade e um deles respondeu, quase tartamudeando:
- Sim, sim, temos aí umas obras muito jeitosas de "Ciências Ocultas"!
Os vendedores de livros sabem pelo menos alguma coisa que os alunos e muitos pais e até jornalistas e de um modo geral, quem está interessado, vá-se lá a saber porquê, em apoucar o estatuto social dos "profes" (outra fórmula que traduz bem o aforismo de Beauvoir - "há palavras que matam" e outras que não matando, moem) - não sabem ou fingem não saber, que o neologismo, chamemos-lhe assim, "setor" resulta da contração dos termos, pelos vistos demasiado "clássicos", "senhor" e "doutor".
Se formos para outros sectores de actividade - a justiça, a saúde ou a política, onde toda a gente é, a priori , "doutor", mesmo que "da mula ruça", veremos que o termo usado é "sôtor" - como ficou paradigmaticamente patenteado no célebre debate Soares/Cunhal de 6 de Novembro de 75, cujo momento alto passou para a história como tendo sido:
- Olhe que não ("sôtor"), olhe que não!
Aliás, nesta matéria é de registar uma diferença, ainda assim substancial, entre Coimbra (a lusa cidade dos "doutores") e o Brasil. Em Coimbra para ser tratado por "doutor" é preciso usar gravata, se um sujeito engravatado se sentar a uma mesa de um café, logo o empregado perguntará:
- E o senhor doutor o que vai tomar?
No Brasil basta andar calçado, você entra numa "birosca" e logo aparecerá um moleque gritando:
- Engraxa doutô?
Claro que há situações em que o simples e prosaico "doutor" ou equivalente - "engenheiro", "arquitecto" - já não é suficiente - são conhecidos os casos do catedrático de Letras que chamado de "doutor" por uma aluna de pós-graduação se dirigiu a ela, furibundo, dizendo: "Dótoura é você, que aqui não passa de uma reles sopeira" ou do catedrático do Técnico que quando algum aluno o tratava displicentemente por "engenheiro", respondia enfadado: "Engenheiro será o senhor, se eu quiser"!
Temos então e ainda o "Professor Doutor", o "Professor Engenheiro" e o "Professor Arquitecto".
Vêm-me à memória aquela badalada situação em que sendo Ministro da Educação (que, à época, incluia o ensino superior) o eng.º Couto dos Santos e tendo-lhe um grupo de estudantes exibido os traseiros onde estava escrito em friso: "Não Pagamos" - (as propinas, entenda-se, que aumentaram imenso desde então) e uma "cantiga de mal dizer" que publiquei então a propósito:
Oh jovens de acto insurrecto
Que sorte tivésteis vós
É que ao expor assim o recto
E por ver tanto traseiro
O Couto que é engenheiro
Ia virando arquitecto
- Então que disciplina é que o senhor doutor lecciona?
Respondi, tranquilamente:
- Filosofia, sou professor de Filosofia.
Os homens olharam um para o outro com esgares de alguma perplexidade e um deles respondeu, quase tartamudeando:
- Sim, sim, temos aí umas obras muito jeitosas de "Ciências Ocultas"!
Os vendedores de livros sabem pelo menos alguma coisa que os alunos e muitos pais e até jornalistas e de um modo geral, quem está interessado, vá-se lá a saber porquê, em apoucar o estatuto social dos "profes" (outra fórmula que traduz bem o aforismo de Beauvoir - "há palavras que matam" e outras que não matando, moem) - não sabem ou fingem não saber, que o neologismo, chamemos-lhe assim, "setor" resulta da contração dos termos, pelos vistos demasiado "clássicos", "senhor" e "doutor".
Se formos para outros sectores de actividade - a justiça, a saúde ou a política, onde toda a gente é, a priori , "doutor", mesmo que "da mula ruça", veremos que o termo usado é "sôtor" - como ficou paradigmaticamente patenteado no célebre debate Soares/Cunhal de 6 de Novembro de 75, cujo momento alto passou para a história como tendo sido:
- Olhe que não ("sôtor"), olhe que não!
Aliás, nesta matéria é de registar uma diferença, ainda assim substancial, entre Coimbra (a lusa cidade dos "doutores") e o Brasil. Em Coimbra para ser tratado por "doutor" é preciso usar gravata, se um sujeito engravatado se sentar a uma mesa de um café, logo o empregado perguntará:
- E o senhor doutor o que vai tomar?
No Brasil basta andar calçado, você entra numa "birosca" e logo aparecerá um moleque gritando:
- Engraxa doutô?
Claro que há situações em que o simples e prosaico "doutor" ou equivalente - "engenheiro", "arquitecto" - já não é suficiente - são conhecidos os casos do catedrático de Letras que chamado de "doutor" por uma aluna de pós-graduação se dirigiu a ela, furibundo, dizendo: "Dótoura é você, que aqui não passa de uma reles sopeira" ou do catedrático do Técnico que quando algum aluno o tratava displicentemente por "engenheiro", respondia enfadado: "Engenheiro será o senhor, se eu quiser"!
Temos então e ainda o "Professor Doutor", o "Professor Engenheiro" e o "Professor Arquitecto".
Vêm-me à memória aquela badalada situação em que sendo Ministro da Educação (que, à época, incluia o ensino superior) o eng.º Couto dos Santos e tendo-lhe um grupo de estudantes exibido os traseiros onde estava escrito em friso: "Não Pagamos" - (as propinas, entenda-se, que aumentaram imenso desde então) e uma "cantiga de mal dizer" que publiquei então a propósito:
Oh jovens de acto insurrecto
Que sorte tivésteis vós
É que ao expor assim o recto
E por ver tanto traseiro
O Couto que é engenheiro
Ia virando arquitecto
2 comentários:
Atenção que a frase é apenas: "Olhe que não, olhe que não..." - conforme podes verificar aqui http://www.youtube.com/watch?v=Gen8NmL5g70&NR=1
O debate durou 3 horas e 40minutos, se não me engano, e é verdade que a frase mais retida é o "Olhe que não, olhe que não...", mas também houve muita troca de "doutourice" - "sôtor" para cima, "sôtor" para baixo, para a esquerda e sobretudo para a direita, que é o que se vê da "sociedade sem classes" do Mário Soares e cá pelo burgo e também pela minha Faculdade e, já agora, pela tua, tivemos o ensejo de observar ao vivo a prática da "democracia" com as "mais amplas liberdades" do PCP versão UEC/Zita Seabra e Brigadas Brezhnev(célula do Manel da Galega).
Obrigado pelo reparo e um grande abraço meu amigo doutor Paulo Goucha Jorge.
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