sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A "Casta" (ao cuidado da Dr.ª Helena Matos)





A Dr.ª Helena Matos, na sua página semanal do Público da última quinta-feira (3 de Fevereiro), referiu-se ao interesse directo de uma “casta” na manutenção do status quo do Ensino Público e que isso se revelaria na existência das “chamadas turmas dos filhos dos professores”. Ora, a questão é infelizmente mais complexa e a Dr.ª Helena Matos com certeza que o sabe, mas o público em geral pode ficar confundido com a utilização de lugares-comuns como este que, sendo generalizadores e “facilitadores” de uma compreensão geral mais imediata, não deixam, como todos os “clichés”, de deturpar a realidade. As turmas dos “filhos dos professores” que estão, segundo a Dr.ª Helena Matos, ao serviço da tal “casta”, são também de facto também as turmas dos filhos dos médicos, dos filhos dos magistrados, dos filhos dos militares, dos filhos dos políticos, dos filhos dos autarcas, dos filhos dos engenheiros, dos filhos dos economistas, dos filhos dos empresários e até dos filhos dos jornalistas, ou seja dos filhos, netos, sobrinhos, enteados e afilhados de tudo quanto faz parte das chamadas “forças vivas”.
Mas atenção, e a Dr.ª Helena Matos, pessoa sábia e avisada, também sabe perfeitamente que nenhum destes grupos de actividade antes enunciados corresponde em bom rigor a “classes” homogéneas no sentido socioeconómico do termo. Na verdade, muitas professoras não têm por cônjuge outro “mísero” (na auto-designação do Professor Cavaco) professor, nem todos os jornalistas têm cargos de destaque em media de referência, nem todos os empresários são muito abastados e nem todos de todos são, de todo, influentes. Existe, sim senhor, uma “casta” que tem capturado em proveito próprio os sistemas públicos de Educação, Saúde, Segurança Social e até de Justiça (se bem que neste sector outros “valores” mais altos se levantem) e isto a Dr.ª Helena Matos, pessoa sábia e avisada, também sabe. Sabe por exemplo que há pessoas que são submetidas a intervenções cirúrgicas em tempo record, que nunca figuraram nas decantadas “listas de espera”; sabe que há pessoas que beneficiam de apoios estatais desde creches e infantários, bolsas de estudo e isenções de propinas e até vagas instantâneas, que não existem para o comum dos mortais, em “Lares da 3ª Idade” e mesmo habitação de baixa renda, que não são propriamente carenciadas; sabe igualmente e tem-no dito com frequência, que os “pobrezinhos” do costume não costumam ser os verdadeiros pobres e que os “ricos fiscais” em Portugal estão também longe de ser os ricos reais (veja-se a este propósito que ser trabalhador por conta de outrem e auferir 1500 euros ilíquidos por mês, fazem, por cá, um “rico” pronto a ser esbulhado). É a mesma “casta” que infiltra as Associações de Pais e torna a vida num inferno a quem não é da “casta” (pelo menos dessa, não nos podemos esquecer que no sistema de castas, para além dos pares, também há os párias) com recursos de 19 para 20, para, como se diz em linguagem futebolística, “conseguirem na Secretaria o que não conseguem em campo” e entrarem no Eldorado da Medicina ou coisa que o valha.
Já comigo, entre meados dos anos 60 e princípios dos anos 70, aconteceu, em dois grandes Liceus de Lisboa, nunca ter ficado numa turma “A” reservada para os filhos de ministros, almirantes e por aí fora (a “casta” da época) e só no 6º ano (actual 10º) isso me calhou numa turma de Letras, quando todos aqueles que não queriam ser “míseros” tomaram (ou as famílias por eles) como, aliás, acontece hoje (com a significativa diferença de então não haver numerus clausus e se poder entrar com 10 em cursos onde hoje não se entra com 18), outras respeitáveis opções. Mais recentemente ficou célebre a “peixeirada” pública, com direito a reportagem televisiva, entre duas directoras de Escolas bem no coração da capital, quando a do ex‑Liceu ( por acaso nenhum dos que frequentei) tentou recuperar a matrícula de um aluno africano, que imediatamente antes tinha “despachado”, por alegada “falta de vagas”, para a antiga Escola Técnica da zona, quando soube que era filho de um diplomata de um dos PALOPS.
Portanto e a bem de uma maior e melhor profundidade de análise e esclarecimento do público, convirá precisar que esta “casta” é a mesma que ocupa os órgãos de direcção e gestão pública, que tem mordomias e borlas várias, desde os consumíveis a viaturas e ao parque de estacionamento reservado, passando por viagens, estágios e formação pagas pelo erário público, ou seja, pelo resto dos “tansos”, e até negociatas várias entre pequenas, médias e grandes, cuja dimensão financeira, se e quando calculada, seria impressionante. Claro que é entre esta “casta” que são distribuídos os cargos que dão “tacho” e “penacho”, sobrando para quem não pertence à casta os que só dão trabalheiras e chatices e é sempre entre os membros da “casta” e os seus apaniguados directos que se distribuem as menções mais elevadas nas chamadas Avaliações de Desempenho que se destinam a garantir a “reprodução” dessa mesma casta em processos tão “sérios” que até tornam possível que alguns dos bafejados façam aquilo à distância, sem sequer lá porem os pés, porque entre a “casta” as férias, perdão “deslocações em serviço”, são como o Natal, “quando um homem quiser”. Por isso proponho que em vez de “turmas dos filhos dos professores” esteja “turmas dos filhos dos manipuladores” – é mais correcto e, sobretudo, mais justo.
Também convenhamos, que poderíamos esperar de um país de castas onde a epitelial modernidade dos gadgets não chega para disfarçar o perverso convívio entre o pior de dois mundos - a banalidade pós-modernaça com os mais atávicos dos arcaísmos, aqueles que já deram ensejo a Eça de o designar como “a Choldra” e a outros antes dele, como o humanista flamengo Nicolau Clenardo que já no século XVI escreveu: “Em Portugal todos somos nobres, e tem-se como grande desonra exercer alguma profissão”?
Ora nesta ”Choldra” em que manda uma “casta”, quem é sistematicamente desonrado e agora espoliado é quem tem o azar de ter que exercer efectivamente alguma profissão, mesmo tendo cada vez menos, e em passo acelerado, a tal “situação profissional satisfatória” e não de apenas fingi-lo, pois nunca a sabedoria popular esteve tão certa ao afirmar que - ”uns comem os figos e aos outros rebenta-lhes a boca”.

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