E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando
Camões, Os Lusíadas, Canto I
Morreu aos 92 anos, o Professor José Hermano Saraiva, irmão do grande António José Saraiva (e, já agora, tio do arquitecto Saraiva, o auto-proclamado inventor dos jornais em saco de plástico). Conheci-o pessoalmente nos idos de 79 quando dava aulas (nessa altura era o que os professores faziam) no Liceu D. Dinis, a Chelas, e ele foi lá fazer uma Conferência, inevitavelmente sobre História de Portugal, acabando por me dar boleia num velho carocha para o Terreiro do Paço, que lhe ficava em caminho, pois morava no Restelo. Eu, um anti-fascista encartado, com expulsão por razões políticas do Liceu D. João de Castro em 72, tinha uma excelente impressão das suas charlas televisivas, (e não era só eu, um dos críticos mais temidos e verrinosos, o "comuníssimo" Mário Castrim, a quem até chamavam o "Sectário Geral", também, com razão, o incensava) estava um pouco constrangido por estar ali a sós com o Ministro da Educação (foi mesmo o único professor do Secundário a chegar ao cargo) de Salazar que protagonizara pela negativa a "Crise Académica de 69" em Coimbra, marcada pelo célebre pedido da palavra do então Presidente da Associação Académica, hoje dirigente socialista, Alberto Martins e pela repressão que se lhe seguiu. Mas durante o trajecto tive oportunidade de trocar impressões com um homem encantador, de um discurso solto e mordaz, com um grande sentido de humor e uma enorme largueza de vistas. Se já era seu admirador, ainda fiquei mais.
Continuei a assistir, com grande e divertida assiduidade, às várias séries de programas televisivos de divulgação da lusa história em que era insuperável, quer pelo suspense que criava em cada episódio, quer pelas teses, no mínimo, "heterodoxas", que ia aventado (como a que lhe acarretou a proscrição em Guimarães por ter posto em causa, em favor de Coimbra, o seu estatuto de primeira capital do reino) e até por algumas gaffes divertidíssimas que em pessoas com o seu charme, são perfeitamente desculpáveis, como aquela da "Piscina de D. Afonso Henriques" em que o Professor, a partir de uma antiquíssima piscina termal perto de S. Pedro do Sul, aventa a hipótese, que dá por factual, de ter sido neste balneário que D. Afonso Henriques e os seus mais dilectos validos retemperavam forças depois dos combates da Conquista, posto o que jantavam "uns capõezinhos assados no forno com batatinhas aloiradas, regados com um belíssimo tinto de Lafões". Passem as "batatinhas" no século XII, deve ter sido mais ou menos assim. Também se conta a estória de um confronto em Tribunal com o causídico da parte contrária, Hermano Saraiva também era advogado, e de este se lhe ter referido como: "Ali o meu colega, Dr. José Honrado Saraiva". Ao que ele terá dito: "Não sou Honrado" e o outro respondido: "Isso já nós sabíamos". Mas era, sim senhor.
Conhecendo o seu passado não pude deixar de verificar uma espécie de transfiguração política quando ele que foi fazer programas praticamente a partir de todas as cidades e vilas do País e até a muitas das antigas colónias, tinha o poder de transformar qualquer lugarejo numa importantíssima metrópole, desafiando a própria imagem e conseguindo sobrepor-lhe a pujança da palavra dita. Sendo quase sempre o único a falar, excepção feita ao seu tio e padrinho, José Hermano Baptista, então com 107 anos, sobrevivente da Batalha de La Lys. Vindo ao Barreiro e ao Seixal, ao falar do passado industrial e das lutas operárias foi mais radical que Álvaro Cunhal (que no discurso nunca o era) e o camarada Jerónimo juntos e ao vivo, na condenação do Capitalismo, da exploração e da repressão da classe operária e do povo trabalhador.
Aliás, uma das suas entrevistas mais sugestivas é aquela em que confessa:
"Socialistas em Portugal só conheci um - o Doutor Salazar. Também gosto muito do doutor Mário Soares, mas é por outros motivos".
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