Diz-se que um provérbio chinês reza qualquer coisa como: "Deus nos livre dos tempos interessantes" - deve ser uma interpretação, pois não sei se os "chineses" falariam propriamente em algo como "Deus", mas para o caso tanto faz, o que importa é o sentido, no sentido (e passe a redundância) que os tempos interessantes costumam ser atribulados. Os tempos que ora vivemos trazem essa marca, a marca da História a acontecer e a manifestar-se à consciência enquanto acontece.
Cá pelo rincão há quem teime em não querer ver isso mesmo ou, com maior cinismo, vendo-o, deitar tinta de ferrado para tentar esconder o que é em si mesmo evidente. O caso dos resultados eleitorais de 4 de Outubro último trá-lo à saciedade aparecendo como guardiães de uma invocada "tradição", ainda que esta possa não estar plasmada na Lei, demais a mais estando Portugal longe de ser um exemplo da prevalência do Direito consuetudinário. Quer dizer que na interpretação desses doutos arúspices da política prática (às vezes demasiado) tem dias que pode ser assim e outros em que tem que ser assado.
Dois exemplos de caso: as palavras de Sua Excelência o Senhor Presidente da República ao invocar a prática costumeira na indigitação do Primeiro-ministro, mesmo desprezando a estrita legalidade em toda a sua amplitude e proscrevendo para o limbo exterior forças políticas que representam um quinto dos votantes, o que institui de facto partidos de primeira e partidos de segunda, cabendo aos primeiros governar e aos segundos "dourar a pílula" da democracia. Alegação: não haver precedente, o que, convenhamos, é fruste face à letra da Constituição que estipula "ter em conta os resultados eleitorais", o que está longe de ter uma leitura unívoca.
Mas eis que se apresenta um segundo caso: o da eleição do Presidente do órgão Assembleia da República, os mesmos guardiães invocam a "regra instituída"(ai que esta mania das "regras" já se está a tornar obsessiva, até por serem "regras" in partibus e que valem só para o que interessa).
Consistindo essa "doutrina" na mesma alegada obrigatoriedade de eleição (mas que raio...) de um elemento da força que "ganhou" as eleições, como se os deputados não estivessem lá a fazer nada e para nada servissem as maiorias, neste ou naquele sentido (o candidato é eleito por maioria absoluta dos votos, algo que nenhuma força política está em condições de reclamar).
Se assim fosse nem valeria a pena haver procedimento de eleição com chamada nominal e tudo, bastaria proclamar do alto da tribuna o nome do ungido.
O que vale é que há "tradições" para tudo e para todos, havendo casos até em que o "speaker", correspondente ao Presidente do órgão, costuma ser da oposição, vejam lá o que as "tradições" podem ser.
Post Scriptum: desta vez parece que, mesmo por cá, a "tradição" já não é o que era.