sábado, 25 de fevereiro de 2012

Então, foi assim...





A Secção do Barreiro do Liceu Nacional de Setúbal, que passaria a ser o Liceu Nacional do Barreiro em 1970, abriu as suas portas no ano lectivo de 1967/1968, ainda Salazar não tinha caído da cadeira. Nesse tempo a disciplina de Religião e Moral era obrigatória, pelo menos era pouco "aconselhável" invocar qualquer motivo de "consciência" para dela ser dispensado, pelo que ninguém o fazia (ontem como hoje, não abundavam os "heróis" na sociedade portuguesa ). A "coisa" era dada quase sempre por padres e era encarada pela maior parte dos putos como uma "estopada" havendo, em geral, fortes razões para isso. Eu até tive uma experiência traumática, pois no ano anterior, em Lisboa, no Liceu de Gil Vicente, fui corrido da aula pelo padre que ministrava a disciplina ao bofetão e ao pontapé, só por, em resposta a uma pergunta sobre "os nossos primeiros pais", me ter atrevido a pôr em causa a real genealogia da Humanidade em Adão e Eva.
A expectativa era, portanto, no que toca ao professor da disciplina, razoavelmente baixa. Eis senão quando nos aparece um jovem padre "fardado" não já de sotaina, mas ainda com o fato preto e o respectivo colarinho, com a particularidade de vir para o Liceu de "Lambretta". Mas esta foi apenas a menor das "particularidades", o padre Francisco Fanhais, assim se chamava (e felizmente chama) o tal jovem professor de Religião e Moral, começou por trazer para as aulas, para além da viola, um gira-discos portátil e muita, mas não qualquer, música. Através dele conhecemos Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira; brasileiros como Geraldo Vandré e João Cabral de Melo Neto (autor da inesquecível "Morte e Vida Severina"); franceses como Brassens, Reggiani e Léo Ferré (e o belga francófono Jacques Brel); italianos como Battiato; espanhóis como Paco Ibañez e Manolo Diaz; americanos como Pete Seeger, Bob Dylan e Joan Baez e muitos, muitos outros.
A "Moral" era esta genuína Educação para a Cidadania, a "Religião" foi a do exemplo de generosidade, bondade, coragem e alegria de viver. Ele próprio publicou discos e foi ao Zip-Zip (1969), programa iconográfico da televisão portuguesa, quando a Liberdade começou a anunciar que iria passar por aqui.
As temáticas discutidas nas aulas eram as problemáticas postas pelas canções - a falta de liberdade, as carências económicas e sociais e a batalha pelo Progresso. Ao pé do Chico Fanhais, como carinhosamente o passámos a tratar, o padre "prá frentex" figurado na série "Conta-me como foi" seria frouxo. Claro que este "engano de alma ledo e cego" não podia durar muito e um dia o Chico faltou às aulas, o que não era costume. Soubemos pouco depois que a PIDE andava à procura dele, pelo que achou mais prudente dar um "salto" até Paris (julgo que não de "Lambretta"), donde só regressou após o 25 de Abril.
Por isso, até acabar o Liceu, continuei sempre a ter Religião e Moral, mesmo podendo, na "primavera" marcelista, tê-lo deixado de fazer. Compensou, os dois professores que tive depois do Fanhais - os padres Carlos Capucho e Adelino - não tocando, nem cantando, eram da mesma cepa. Hoje parece que todos os três têm filhos e netos.
Tive a honra de em 94, com o Armando Pedrosa, ter trazido o Chico Fanhais de novo ao Barreiro para um Concerto na Escola de Santo André e de ainda ontem no "Pial" o ter abraçado mais uma vez, em singela homenagem a um amigo de quem foi inseparável - o Zeca.

5 comentários:

Paulo Goucha disse...

Foi pois. Confirmo e com muito gosto

imank disse...

Muito obrigado pela confirmação, meu caro. És uma testemunha, de vida vivida, da maravilhosa surpresa que foi a chegada do Chico. Já a partida era, ao tempo, expectável. Felizmente foi breve: foi em 71, regressou em 74.
Um Abraço do Tozé

Filipe disse...

E nós miúdos de treze, catorze anos ficávamos rendidos.Eram as canções ao vivo (Fanhais também trazia a sua viola) e os cantores que referes, a poesia. E a consciência que já tinhamos dos problemas da nossa sociedade. Ah, como o Barreiro era diferente...
E depois também havia a voz do nosso colega Jorge Morais!

Abraço para ti Tozé, que tão bem retrataste aqueles tempos,
para o Paulo Goucha e todos os nossos Colegas.

imank disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
imank disse...

É verdade Luís Filipe, caro colega e amigo, a nossa geração teve muita sorte com os "verdes anos" em que assistimos e participámos no progresso económico e social do nosso país e na sua libertação política. Não estamos a ter tanta sorte naquilo a que esperávamos que fosse a entrada nos "golden days". Como disse um grande amigo meu, o Viriato Soromenho-Marques, "Portugal chegou sempre tarde à Festa da História". Fomos dos últimos a apanhar o comboio do desenvolvimento e estamos a ser dos primeiros a ser dele postos na rua. Estamos a viver um infrene ciclo da decadência - da nossa terra, que, como observas e muito bem, era muito diferente para melhor, com vida e e economia próprias; do nosso país, que está a entrar na penumbra antes de ter chegado ao zénite e do continente a que parecíamos ter chegado, quando depois de alguma "carne", se começam a rilhar os "ossos".
O Jorge Morais era e é, uma personalidade incontornável que continua a dar-me a honra e o grande gosto da sua amizade.
Muito obrigado pelas tuas amáveis palavras, quis o "destino" que continuássemos o nosso percurso juntos como colegas de trabalho e como provas vivas de que nem tudo se perdeu:
"Atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir"!

Um Abraço do Tozé