domingo, 26 de agosto de 2012

As Lideranças Bicéfalas e o Velho Estilo Testamentário









Louçã que, caso ninguém tenha dado por isso, é um marxista-leninista ortodoxo, tendência, não Groucho, mas Trotsky (não pode supor-se que só o estalinismo criou a sua ortodoxia, criou foi a ortodoxia triunfante), homem inteligentíssimo e de vasta cultura histórico-política, terá plena consciência de que a "indigitação" pública de sucessores para liderar o Bloco iria "soar" como um "testamento político". Afinal estes tiques não são exclusivos dos Kim Il-sung, há toda uma tradição inerente aos "imperadores vermelhos" que fez escola, criou um estilo e se lhes cola à pele, ainda que à escala. Louçã, um dos mais lúcidos e brilhantes dos "príncipes radicais" (atenção, digo "radicais", não "radicalistas"), não conseguiu, talvez porque não tenha querido, evitar esse estigma. Atribui-se a Salazar a frase: "Em política, o que parece é" - apesar de me parecer uma constatação bem mais antiga cujo sentido remonta a Maquiavel e mesmo aos clássicos greco-latinos - e Louçã sabe melhor do que ninguém  o acerto do aforismo, demais a mais no contexto do caleidoscópio mediático contemporâneo e da sua parafernália ideológico-psitacista. Não terá sido, pois, por ingenuidade que designou a liderança bicéfala (homem - mulher/mais velho - mais nova) para a sua própria sucessão. Alegando, aliás, até a pouca originalidade dessa "solução" inovadora, que já existe no Partido da Esquerda francês que, segundo afirmou, terá recolhido quatro milhões de votos nas recentes Presidenciais. Ora, há aqui uma mistura de "alhos com bugalhos", quem recolheu os tais quatro milhões de votos foi o candidato Jean-Luc Mélenchon apoiado pelo partido de que é co-presidente  (com  Martine Billard), e não propriamente o partido que nas Legislativas imediatas (e em coligação com o Partido Comunista Francês) teve bastante menos sufrágios. Seja como for, Louçã está objectivamente (como se diz no jargão dialéctico-materialista) a condicionar a escolha dos militantes do Bloco, arriscando-se a "queimar" os seus próprios  designados "delfins". Isto por que no Bloco, que recordemos é um "Bloco" e não um "Partido" (apesar de ter assumido essa forma jurídica por razões pragmáticas) existem várias "sensibilidades" e uma tradição libertária incorporada que não deve achar piada nenhum a este tipo de "diktats", mesmo quando em innuendo.
O Bloco é uma construção delicada, conseguiu juntar (não direi "unir", como agora se tornou evidente) a água e o azeite, uma força de génese trotskista como o PSR e uma força de génese estalinista como a UDP, mais uns quantos dissidentes do PCP (a Política XXI) e mais uns social-democratas de esquerda e umas franjas mais radicalistas (como a  Ruptura/FER de Gil Garcia, agora, ao que parece, em rotura com o próprio Bloco).  Assinale-se que nem todos os "maoístas", nem todos os "trotskistas", entraram para o Bloco, parte da UDP, o Grupo da revista "Política Operária" do prestigiado anti-fascista Francisco Martins Rodrigues, antigo destacado dirigente do PCP , ficou de fora por razões de preservação da sua "pureza" ideológica (um dos seus militantes disse-me literalmente que "os verdadeiros revolucionários não querem nada com homossexuais, nem fumam droga") e o pequeno partido trotskista POUS dos "históricos" Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira que chegaram a ser deputados do PS na Constituinte usando a táctica do "enterismo" (isto é infiltrar partidos maiores e tentar "dar-lhes a volta" por dentro através da constituição de fracções e escolheram bem, que partido melhor do que o PS da altura para tal, no PCP nunca teria sido possível...) tendo sido expulsos quando a "coisa" se tornou demasiado evidente, também não aderiu ao Bloco. Esta obra de aglutinação deve ter sido tão difícil que não resisto a contar um pequeno  e verídico episódio que permite ilustrar o tipo de relações tradicionais entre uns e outros. Nos idos de 76 durante a Campanha Eleitoral para as Presidenciais (as primeiras após o 25 de Abril) constituiu-se, para apoiar a candidatura de Otelo Saraiva de Carvalho, uma organização frentista - os GDUPs (Grupos Dinamizadores de Unidade Popular) que integrava militantes e simpatizantes da UDP, do MES, da FSP, do PRP e muitos dos chamados "independentes de esquerda" (e, em abono da verdade, também  muitos simpatizantes do PS e do PCP, o que permite compreender o fraco resultado do candidato oficial deste partido, Octávio Pato). Durante uma reunião do GDUP do Barreiro em que participei, para delinear as acções locais da campanha (lembro-me dos muitos milhares de pessoas no Comício do Campo do Luso, onde não cabia nem mais um fósforo) um dos representantes da UDP de então, um operário da Oficinas da CP, chamado Alfredo, ele próprio com figura de "estaline", ainda jovem, mas entroncado, camisa de xadrez, com o cabelo à escovinha e um grande bigodaço "proleta", entra em controvérsia comigo e perante os meus argumentos, riposta aos gritos:
- "Camarada aqui não há mas, nem meio mas, é ter confiança absoluta na organização e fé cega no marxismo-leninismo" !
De imediato, perguntei-lhe se era materialista? Ele, desconfiado, retorquiu que claro que era! Qual seria a minha dúvida?! Limitei-me a observar, com algum gozo, diga-se de  passagem, que, primeiro, os GDUPs eram uma Frente Eleitoral, não eram uma organização marxista-leninista (oficialmente nem a própria UDP o era), e, depois, que "fé cega" me cheirava a fanatismo religioso, que nenhum materialista poderia assumir. O homem, furioso, fazendo menção de me agredir, veio direito a mim aos gritos de "Provocador, anarca, trotskista"!!!
Pois é, minhas caras e meus caros (e a ordem da enunciação aqui, para ser "à Bloco", não é arbitrária), "trotskista" para a UDP era um insulto. Os próprios trotskistas, mas aí por outros motivos, não se intitulavam como tal (tal como os maoístas também não se auto-designavam desse modo, preferiam apresentar-se como "m-l" = "marxistas-leninistas", excepção feita ao grupo "linpiaoísta",acerrimamente pró Revolução Cultural Chinesa, MRPP, a que pertenceu Durão Barroso, então o "Zé Manel", que se intitulava "m-l-m" = "marxista-leninista-maoísta"). A variante trotskista do Movimento Comunista Internacional ainda comporta várias tendências e até se dizia, na paródia, que um militante era um núcleo, dois um partido, três uma  federação e quatro uma "Internacional". Também se contava um episódio de uma lista concorrente à direcção de uma Associação de Estudantes que tendo catorze elementos, tendo um deles morrido antes do escrutínio e tendo votado todos os restantes, acabou por ter doze votos.
Ter conseguido agrega toda esta gente foi um enorme feito e já "rendeu" uma razoável expressão eleitoral (16 deputados em 2009), que caiu para metade em 2011 e corre o risco de se reduzir ainda mais, se o Bloco não adoptar uma estratégia clara e distinta, como diria o outro, que como antes do "percalço" de 2011, lhe permita pelo menos manter o eleitorado jovem e urbano. Para isso não é melhor que não se meta em "meças" sindicais com o PCP, o Dr, João Semedo já percebeu isso com a proposta da plantação limitada de cannabis para consumo próprio.
(http://www.marxnops.blogspot.pt/2012/07/o-meu-pe-de-liamba-lima-ou-o-bloco.html).
É muito o que me aproxima do Bloco, o discurso societário, a clara opção pela esquerda socialista e libertária, a frescura e o arejamento com um toque geracional "forever young" (uma vez "hippie", "hippie" para sempre); o que me afasta é uma espécie de dogmatismo pós-moderno e "politicamente correcto", não exclusivo do Bloco, mas nele muitíssimo arreigado, que insiste em confundir o "género humano" (agora que já não  há "sexos" e que mesmo quem se diz pela liberdade sexual, o aboliu trocando-o pela estereotipada "igualdade de género")  com o "manel germano" e ter alguma dificuldade em saber se "o tiro foi no liro ou foi no ló e quem deve ir para o xilindró".
O Bloco faz muita falta à sociedade portuguesa enquanto comunidade política, foi tão importante erguê-lo e representou uma tão grande lufada de ar fresco e potencial de esperança que não gostaria mesmo nada de  o ver, por erros próprios, desmoronar-se.

Post Scriptum:

Para fazer a profilaxia, nem sempre conseguida, dos eventuais e lamentáveis processos de intenções e do inevitável ferir de susceptibilidades algo exacerbadas:
Este post é da autoria de homem livre, escrito por amor e com humor.
Esclareço, desde já, que não estou a chamar "bêbedo" ou "bêbeda" a quem quer que seja, nem "Kim Il-sung" (excepção feita ao próprio), nem "ditador", nem por aí fora.
Honi  soit qui mal y pense !

Nenhum comentário: