quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O Orçamento e a Dúvida Metódica - Algumas Observações Praxiológicas




O dr. Paulo Rangel tem uma página semanal no "Público" (às terças) de que sou frequentador assíduo (o mesmo digo em relação às de Correia de Campos e Francisco Assis), é no meu modesto entendimento, demais a mais sendo político no activo, um dos mais profícuos pensadores políticos num certo deserto de ideias do nosso panorama caseiro que prefere, obviamente, os auto-alegados "doers" aos "thinkers". Na última terça, 20 de Novembro, o seu texto intitulou-se "O Orçamento e a dúvida metódica" e nele pretendeu e conseguiu, tendo em conta o tema, dar uma no cravo e outra na ferradura. Para esse circunlóquio moderadamente "paracrítico" (uma espécie de "quasicoisa" um pouco ao estilo "1x2" do também eloquente Professor Marcelo), que acaba por ser "simpático" para o Orçamento de Estado deste governo, perante o qual, diga-se de passagem, não se tem eximido de assumir posicionamentos em tom de "crítica construtiva", argumenta com "ressuscitar Descartes do mofo e do bolor dos livros que já ninguém lê".
Em primeiro lugar, não vou ao ponto de lhe recomendar que fale por si, pois entendo a hipérbole do "já ninguém lê" na sua função estilística, acrescento para o informar, caso não esteja ao corrente, que no Ensino Secundário (os actuais "liceus") deixou de ser contemplada a sua leitura obrigatória (como aliás, na disciplina de Filosofia, a de qualquer texto completo, tudo ficando pelo fragmentário) . De facto muito pouca gente há-de fazê-lo. Mas já que o  tornou a ler e se socorre desse precioso texto do velho mestre francês que é "O Discurso do Método", poderia tê-lo feito de maneira mais cuidada e menos "habilidosa" mesmo com o denunciado objectivo de apoiar, ainda que de modo "crítico", o Orçamento de Estado do governo de coligação em que o seu partido (o PSD) é o parceiro maior. Assim quando pretende que a dúvida como método que, em consonância com o atrás exposto, prefere à dúvida céptica, tem como fim encontrar "terra firme" ou seja encontrar um "ponto de partida", não poderá elidir que esse ponto de partida seguro é o "cogito" isto é a intelecção de uma evidência racional que permita estabelecer um percurso heurístico em direcção a uma verdade, passe a  redundância,  tornada segura pela intuição intelectual (a tal "evidência"). Ora, no caso vertente (e de "vertente" muito inclinada para baixo), o do Orçamento, não me parece que esse ponto de partida racional "claro e distinto" tenha sido estabelecido com um mínimo de segurança.
Na verdade para construir uma "moral definitiva" e enquanto estiver na fase de "work in progress", será, para Descartes, necessário deitar mão a uma "moral provisória" que permita guiar os nossos actos, durante o tal "interim", para que não se produza um hiato de princípios que poderia constituir um interregno da razão susceptível de tolher toda e qualquer iniciativa. Tal como se deverá estar "comodamente instalado" enquanto avança a construção de uma casa nova. Ora aqui é a porca torce o rabo, não me parece que começar por destruir a casa seja um bom princípio e permita um mínimo de "comodidade". Também na mesma obra (II Parte) escreve o mestre : "Porém, como um homem que caminha sozinho e nas trevas, resolvi seguir tão lentamente e usar de tanta circunspecção em todas as coisas, que, muito embora avançasse pouquíssimo, evitaria, pelo menos cair".
Parece que a estratégia subjacente ao Orçamento é tão rapidamente e em força dar o passo final para o abismo, que de todo em todo contraria esta precaução.
Descartes tomou de empréstimo ao senso comum uma, assaz conformista, "moral provisória" para não permanecer "irresoluto nas acções" enquanto não ultimava uma prometida "moral definitiva" a construir de acordo com os princípios da Razão.  Temo que a cómoda analogia do Orçamento por recurso ao Método, se venha a verificar como não válida. Afinal de contas o único ponto de semelhança entre o procedimento de Descartes e o Orçamento de Estado que o douto Paulo Rangel tenta acomodar intelectualmente na sua provisoriedade, é que Descartes nunca cumpriu esta promessa e a tal "moral definitiva" nunca viu a luz do dia.          
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

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